terça-feira, 30 de setembro de 2008

Quando a família faz a diferença

Em dois mil e três trabalhei com uma turma de trinta alunos, pré-adolescentes, final do 2º ciclo de formação, antiga 5ª série. Com essa turma tive a chance de viver uma experiência muito significativa não só como professora, mas também como aprendizado de vida.
Iniciado aquele período letivo, logo nos primeiros dias de aula senti falta de uma das alunas constantes da lista da minha turma e que ainda não havia participado de nenhuma aula. Como os alunos estavam juntos desde o pré, eles mesmos me disseram que tal aluna era colega deles e que não estava participando das aulas por estar doente.
Na semana seguinte, fiquei conhecendo os pais dessa aluna e os motivos pelos quais ela ainda não participara das aulas. Estava com câncer e por isso em tratamento. Os pais procuravam a escola para se certificarem dos direitos da filha de continuar fazendo parte do grupo e não se desligar da escola, pois gostava muito de estudar, também eles pais queriam que a filha continuasse os estudos.
Imediatamente coloquei-me a disposição dos mesmos para fazer o atendimento possível naquela situação. Sabia que ela tinha o direito a ser assistida em casa e que poderia ficar na condição de curso não presencial, desde que houvesse condição de os conteúdos dados em sala serem transmitidos a ela de alguma forma. Combinamos de que os pais se encarregariam de fazer a "ponte" aluna/escola; que levariam semanalmente para ela as atividades trabalhadas em cada disciplina e que as possíveis dúvidas seriam esclarecidas por mim, diretamente a ela, via telefone.
Isso dito assim, hoje, parece simples, possível e até mesmo fácil. Mas só pode ser realizado devido à convergência de vários fatores: comprometimento familiar, motivação e gosto pelo estudo e vida escolar da aluna sem nenhuma defasagem de conteúdo; participação da escola nesse processo, (colegas de turma e professora) e o fato de eu ministrar todas as disciplinas para a turma: Língua Portuguesa, Matemática, Geografia, História e Ciências.
Por causa do tratamento quimioterápico e suas consequências e da localização do câncer (na perna o que a fazia mancar) a aluna não quis que seus colegas de turma soubessem da situação que vivia. Também eu, por ser a nova professora, não pude conhecê-la pessoalmente - estava insegura, revoltada com a doença e sofrida com a rotina do tratamento. Respeitei esse seu momento, mas tomei a iniciativa de manter um primeiro contato com ela por telefone; a partir daí nossas "aulas" passaram a ser "dadas" dessa forma. Todas as semanas recebia seus cadernos impecáveis: letra, estética e conteúdo. Com o tempo tive notícias ,por seus pais, de que um tio, professor de Matemática, a ajudava nesse conteúdo. As outras matérias foram estudadas por ela, nos intervalos do tratamento, nos períodos em que se sentia bem e por telefone, comigo, sempre que precisa de alguma explicação extra.
Esta aluna fez todas as avaliações e trabalhos que os colegas presenciais fizeram...
Com o tempo, consegui que ela converssasse, por telefone, com as suas colegas mais chegadas. Fui recebida por ela, em sua casa, antes das férias de julho. Em setembro, levei toda a turma até lá e fizemos para ela uma festa de aniversário. Terminamos o ano de 2003 com essa aluna ainda em tratamento e tendo concluído brilhantemente o final do 2º ciclo em minha escola.
No ano seguinte, 2004, ela foi matriculada no 3º ciclo da escola para onde fora encaminhada.
Participei da reunião de professores dessa escola, a pedido da mãe de minha aluna, para explicar-lhes como foi possível a alguém que não tivera presença computada em nenhuma aula de 2003 ter sido promovida e recomendada como uma excelente aluna. O outro motivo da minha presença naquela escola fora o de pedir permissão, em nome dos pais, para que a filha deles pudesse assitir às aulas usando um chapeuzinho de crochê - vestuário de uso proibido naquela escola, tanto para meninos quanto para meninas. A aluna ainda estava em tratamento e tinha vergonha de usar peruca, adaptou-se melhor com um chapeuzinho azul, feito pela mãe.

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